Estamos sozinhos?

sábado, outubro 03, 2009

JC e-mail 3861, de 02 de Outubro de 2009.

17. Estamos sozinhos?

A astronomia promove desde Galilei uma revolução que avança sem parar no conhecimento do universo

Martha San Juan França escreve para o "Valor Econômico":

Em 23 de setembro, uma enorme plataforma sobre rodas começou a levar para o altiplano de Chajnantor, no deserto de Atacama, nos Andes chilenos, a primeira das várias antenas do observatório astronômico que será instalado ali, a 5 mil metros de altitude. O ambicioso projeto, do European Southern Observatory (ESO), é apenas uma das várias iniciativas que assinalam o transcurso de uma era de extraordinários avanços da astronomia, que enriquecem continuamente as possibilidades tecnológicas de ampliação do conhecimento do universo - onde a Via Láctea, a galáxia em que se encontra o sistema solar, este da Terra, não constitui senão um pormenor.

No horizonte extremo do empenho transnacional pelo desvendamento dos mistérios siderais está o European Extremely Large Telescope (E-ELT), outro projeto do ESO, que deve começar a ser construido em 2010 e poderá entrar em operação em 2018. Com seu espelho de 42 metros de diâmetro e um "olho" de tamanho equivalente a meio campo de futebol, o E-ELT poderá levar a alturas hoje inimagináveis a percepção que se tem do universo, nos mais variados sentidos, inclusive no que se refere à possibilidade de existência de vida em outros planetas.

Passaram-se 400 anos desde que o físico e matemático italiano Galileu Galilei demonstrou ao Senado de Veneza, em agosto de 1609, o funcionamento de seu telescópio rudimentar - duas lentes de vidro nas extremidades de um tubo de couro, que aumentavam objetos nove vezes. Seria o momento de partida de uma revolução que não teve mais fim. Nascia a moderna astronomia.

O holandês Hans Lipperhey e o inglês Thomas Harriot trouxeram a público, na mesma época, aparelhos de igual finalidade que haviam inventado, mas caberia a Galilei tornar o telescópio amplamente conhecido e o universo, um tanto melhor compreendido, pela importância das observações que pôde fazer com seu "tubo óptico" aperfeiçoado - divulgadas em linguagem acessível a leigos, diferente da usada nos tratados científicos da época. Foi dessa maneira também que ele difundiu informações a respeito do que havia visto ao focar Saturno e a Lua.

A propósito, sabe-se um pouco mais sobre a constituição dos anéis do segundo maior planeta do sistema solar (o primeiro é Júpiter) e suas luas, desde agosto, quando a sonda Cassini, do projeto americano-europeu de observação, fez fotografias só possíveis a cada 15 anos, antes e depois do equinócio de Saturno. E no final de setembro a Nasa revelou que foram encontradas na superfície da Lua moléculas de água em quantidades bem maiores que as antes verificadas - o que sugere facilidades futuras de apoio logístico a missões espaciais que partam do satélite da Terra para outras partes do universo.

Graças a Galilei, então, sabe-se há séculos que os céus não são imutáveis, como pretendia a Igreja (suas revelações também seriam importantes para endossar a autenticidade das teorias heliocêntricas de Copérnico). Com ele, a astronomia tomou seu curso de ciência que expande de modo ininterrupto o conhecimento sobre o cosmo. E que também exige mais cérebros trabalhando para entender sua complexidade. E mais investimento em telescópios, satélites espaciais e instrumentos de precisão.

No caso brasileiro, a pequena, mas internacionalmente reconhecida equipe de astrônomos (208 doutores, responsáveis por 2% das publicações internacionais), considera o momento atual uma oportunidade única.

"Os projetos internacionais de astronomia começaram há algumas décadas e estão se ampliando cada vez mais", afirma Augusto Daminelli, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), coordenador do Ano Internacional da Astronomia 2009 no Brasil. "Aprendemos que problemas grandes podem ser atacados com recursos financeiros grandes. Os observatórios da atual geração ('very large telescopes' - VLT) reúnem diversos países e os da próxima geração ('extremely large telescopes' - ELT) demandarão ações cooperativas ainda maiores. Os custos serão elevados, mas o número de usuários também deverá ser proporcionalmente grande."

Segundo relato de Gerry Gilmore, da Universidade de Cambridge, a astronomia ganhou enorme impulso recentemente em consequência de grandes projetos como o telescópio espacial Hubble, os quatro telescópios de 8 metros de diâmetro instalados pelos europeus no Norte do Chile, os dois Kecks, de 10 metros cada, no Havaí, e o grande telescópio das Ilhas Canárias, com 10,4 metros. Isso, além dos satélites para observação de raios X (Rosat, Asca, Chandra, XMM-Newton), infravermelho (Iras, ISO), raios-gama (Compton) e outros.

Em palestra durante a assembléia-geral da IAU (União Astronômica Internacional), no Rio de Janeiro, em agosto, Gilmore frisou que a nova geração de instrumentos promete ainda mais. Citou o telescópio gigante Magalhães, em construção nos Andes chilenos, cujo espelho principal terá resolução de 24,5 metros; o telescópio de 30 metros a ser construído em Mauna Kea, no Havaí; e o "European Extremely Large Telescope" (E-ELT), do ESO, com um espelho de 42 metros, resultado do maior consórcio internacional já estabelecido pela astronomia.

Há ainda os radiotelescópios tamanho gigante especializados em captar ondas de rádio: o Alma ("Atacama Large Milimeter Array"), em construção no deserto de Atacama, cujas antenas combinadas podem formar imagens de altíssima resolução, semelhantes às que seriam obtidas por uma antena de 16 quilômetros de diâmetro. E o "Square Kilometre Array" (SKA), uma floresta de 3 mil antenas de 15 metros de diâmetro distribuídas numa área de um quilômetro quadrado, que deve ser instalada na Austrália ou na África do Sul.

Tantos instrumentos, de custo literalmente astronômico, têm o objetivo de enxergar a luz e outros tipos de radiação magnética em todas as frequências e em alta resolução, de modo a responder a questões que não puderam ainda ser abordadas, mas que os telescópios atuais se encarregaram de levantar.

Recentemente, em palestra realizada em São Paulo, o astrofísico romeno Mario Livio, que atuou como diretor da divisão científica do telescópio espacial Hubble, falou sobre os grandes desafios na compreensão do universo. "Devemos continuar a procura por planetas similares à Terra em volta de outras estrelas, tentar mapear a distribuição e propriedades da matéria escura que permeia o universo e verificar porque ele está se expandindo com velocidade cada vez maior."

São questões complexas, mas fascinantes, que estão sendo tratadas separadamente. A começar pela primeira, a busca pelos exoplanetas, aqueles que estão fora do sistema solar. Afinal, existem outros planetas iguais ao nosso? E se existirem, qual a possibilidade de haver vida e até de civilizações capazes de se comunicar com a Terra?

Para se ter uma ideia de como as pesquisas nessa área evoluíram, basta dizer que até a década de 1990, a busca de terras e vida extraterrestres se resumia à especulação. Os que defendiam o investimento nesse campo citavam a famosa equação do astrofísico Frank Drake que, 30 anos antes, havia proposto a existência de mais de uma dezena de terras ou luas com características de planeta na Via Láctea, habitadas por seres capazes de receber e mandar mensagens através do espaço. A equação de Drake era baseada em cálculos e estatísticas sobre a localização e a quantidade de estrelas na galáxia e não havia o que pudesse comprová-la.

Os primeiros exoplanetas foram descobertos em 1992, orbitando um pulsar, mas a busca começou a ganhar atenção apenas em 1995, quando o astrônomo Michel Mayor, da Universidade de Genebra, constatou a existência do primeiro deles orbitando uma estrela a 48 anos-luz da Terra. Mayor deduziu a existência do planeta pelos seus efeitos na velocidade de órbita da estrela, já que não era possível observá-lo diretamente.

Por esse método, nos anos seguintes foi possível estabelecer a existência de 350 exoplanetas nas proximidades do sistema solar. No entanto, eram planetas gasosos, do tamanho ou maior que Júpiter, que giravam muito próximos de suas respectivas estrelas e que, portanto, dificilmente poderiam ser habitáveis.

O aperfeiçoamento dos instrumentos e os vários anos de dados acumulados permitiram um salto maior nas pesquisas. Em abril deste ano, o mesmo grupo de Mayor, em conjunto com outras instituições europeias, anunciou ter encontrado um planeta com pouco menos de duas vezes a massa da Terra, orbitando a estrela Gliese 581 - a mesma onde haviam descoberto, dois anos antes, um planeta com diâmetro semelhante ao nosso. Detalhe: o planeta encontrava-se dentro da chamada zona habitável, nem tão perto nem tão longe da estrela e teoricamente capaz de abrigar água líquida.

Para os astrônomos, hoje é difícil imaginar que não exista vida fora da Terra, já que ela requer condições teoricamente simples. Para formar as moléculas essenciais à vida, são necessários elementos químicos, como carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio, que estão entre os mais abundantes no universo. Submetidos a altas temperaturas, descargas elétricas e energia, a combinação desses átomos acabam gerando água (H20), metano (CH4), amônia (NH3), dióxido de carbono (CO2), açúcares, proteínas, ácidos graxos.

"O fato de que a vida se compõe dos átomos mais amplamente encontrados na natureza indica que ela é simplesmente uma expressão da oportunidade e não uma excepcionalidade, um milagre, que poderia ser feito com materiais arbitrários, inclusive raros", afirma Daminelli. "Se até o momento não se encontrou vida em outros planetas, isso não quer dizer que estejamos sós no universo. Pode ser que as buscas foram muito restritas e os métodos, inadequados."

Nos próximos anos, essa busca vai ganhar o apoio de satélites espaciais: em março, foi lançada a sonda Kepler pela Nasa, que vai monitorar variações na intensidade luminosa de 100 mil estrelas entre as constelações de Cygnus e Lira, na Via Láctea.

A ideia é que, quando um desses planetas rochosos passar na frente de suas respectivas estrelas, haverá uma espécie de minieclipse, que a Kepler registrará como uma redução momentânea de luminosidade. Se os planetas rochosos forem mesmo tão comuns como se imagina, os especialistas da Nasa esperam detectar algo entre 50 e 640 candidatos no campo de visão do Kepler, que depois serão confirmados por outros métodos, com instrumentos em terra.

O telescópio da Nasa foi antecedido pelo Corot, em 2006. Construído pelos europeus e operado em parceria com o Brasil, ele é um pouco menor e seu objetivo é fazer a seleção de alvos para trabalhos. Em abril, o Corot descobriu o menor planeta rochoso até hoje observado além do sistema solar. Por estar muito próximo da estrela, no entanto, sua temperatura é muito alta e o planeta pode estar coberto por lava.

Mas, para os astrônomos, as descobertas mais estimulantes dos próximos anos se referem à composição, estrutura e destino do universo. Conforme explica Beatriz Barbuy, do IAG-USP, vice-presidente da União Astronômica Internacional até recentemente, já foi possível investigar os elementos químicos que compõem diversas populações de estrelas e galáxias próximas e distantes, detectar explosões de estrelas ocorridas algumas centenas de milhões de anos depois do início do universo e até ter uma ideia mais precisa sobre a ocorrência do Big Bang, o momento de surgimento do universo: entre 13 e 14 bilhões de anos atrás.

"Mas graças a uma série de observações astronômicas surpreendentes, e recentes, sabe-se agora que, ao contrário do que apontaram todas as previsões teóricas feitas ao longo do século XX, o universo está se expandindo com velocidade cada vez maior", afirma Beatriz.

A ideia de que o universo está em movimento de expansão, iniciado com o impulso do Big Bang, a explosão original, não é nova. Ela existe desde 1929, quando Edwin Hubble (1889-1953) demonstrou que as galáxias estavam se afastando umas das outras e, quanto mais distantes, maior a sua velocidade de afastamento, estabelecendo o que ficou conhecido como constante de Hubble.

Achava-se, porém, que a força da gravidade de toda a massa existente acabaria freando esse impulso em algum momento. Em 1998 se descobriu o contrário, ou seja, que a expansão do universo não estava freando, mas acelerando, como se houvesse uma força contrária à gravidade que repelisse os objetos cósmicos, em vez de atrai-los - conceito originalmente proposto e depois abandonado por Einstein.

A essa misteriosa força, que ninguém sabe o que é, os astrônomos deram o nome de "energia escura". Não confundir com a matéria escura, ou seja, que não emite luz, mas tem massa e pode ser detectada observando-se sua ação gravitacional atuando sobre grandes objetos cósmicos, como aglomerados de galáxias. Hoje, os cientistas sabem que a matéria comum, feita de prótons, elétrons e nêutrons, também chamada de matéria bariônica, corresponde a apenas 5% do universo. O restante constitui matéria escura (25%) e a maior parte, energia escura, que ninguém consegue dizer exatamente do que se trata.

Como disse o astrônomo Adam Riess, do Instituto de Ciência do Telescópio Espacial Hubble, em entrevista logo após a descoberta que deu origem ao termo energia escura, "o universo se comporta igual a um motorista que diminui a velocidade conforme se aproxima de um sinal vermelho e acelera o carro quando a luz fica verde".

Serão necessários dados obtidos por uma grande combinação de métodos para ajudar a deslindar esse mistério. Nos próximos anos, os instrumentos no solo ou no espaço em operação, o próprio telescópio Hubble, que passou recentemente por uma reforma, e os novos observatórios em construção estarão voltados para a energia escura, já considerada pelos cientistas como o mais profundo problema da astrofísica moderna.

Brasileiros ajudam a entender o início de tudo

Uma violenta explosão de raios-gama vinda foi captada há quatro anos pelo satélite Swift, da Nasa. Como é hábito nesses casos, o Swift enviou a localização do fenômeno a astrônomos ao redor do mundo, para que os resíduos pudessem ser acompanhados pelos telescópios em terra. O primeiro a confirmar o sinal e analisá-lo foi o Soar, em Cerro Pachon, nos Andes chilenos.

Ali estavam dois brasileiros: Elysandra Figueiredo e Eduardo Cypriano, ambos do IAG- USP. Eles foram os primeiros a fazer medições que abririam caminho para o estudo do início dos tempos, após o surgimento do universo. Afinal, tratava-se da explosão de uma estrela ocorrida há 12,8 bilhões de anos, a mais antiga observada até então.

"Na época, o Soar estava apenas começando suas operações", recorda-se Cypriano. "Por isso, as observações foram duplamente festejadas. Além de permitir calcular a distância e o brilho da erupção e do local original, demonstrou a eficiência do telescópio de 4,1 metros, considerado a 'menina dos olhos' dos astrônomos brasileiros."

As imagens geradas no Chile são captadas, por exemplo, na USP, onde os pesquisadores podem observar, praticamente ao vivo, fenômenos no computador, graças ao uso de redes avançadas de comunicação.

"A construção do Soar foi um grande desafio de engenharia, que exigiu interação com a indústria e certamente ajudou a elevar nosso padrão em áreas como eletrônica, óptica e robótica", diz Augusto Daminelli.

O telescópio é resultado de uma parceria internacional com o Observatório Óptico Nacional de Astronomia dos Estados Unidos, a Universidade da Carolina do Norte e a Universidade Estadual de Michigan. O Brasil é sócio majoritário do empreendimento, no qual o CNPq e agências de fomento à pesquisa investiram recursos de mais de US$ 12 milhões. Além dele, os astrônomos contam com uma pequena participação no Projeto Gemini, dois telescópios com espelhos de 8 metros de diâmetro, localizados no Havaí e no Chile.

Entretanto, ter grandes instrumentos não é a única garantia do bom trabalho dos brasileiros. "Embora instrumentos modestos tenham mais limite de alvo, mesmo astros aparentemente óbvios como o Sol podem render progressos enormes", afirma Daminelli. "É claro que é preciso ser criativo e ter uma formação sólida em física e matemática. Ao desenhar o projeto de pesquisa, deve-se conhecer bem a competição internacional, para encontrar nichos adequados aos nossos recursos observacionais."

O trabalho do próprio Daminelli é um exemplo disso. Ele dedicou boa parte de suas pesquisas à "Eta Carinae", um sistema com duas estrelas de intensa luminosidade, cujo comportamento ele previu e, que, graças a isso, tornou-se um dos mais observados do céu.

As pesquisas de outros brasileiros também tiveram ampla repercussão. Entre outros, Beatriz Barbuy, ganhadora do Prêmio L´Oreal/Unesco dedicado a mulheres que se destacam na ciência, e do Trieste, para cientistas de países em desenvolvimento, é uma referência no estudo da evolução química da Via Láctea e de explosões de raios-gama.

Thaisa Storchi Bergman, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, destaca-se no estudo de galáxias próximas e buracos negros, e o próprio João Steiner, que presidiu o consórcio que coordena o Soar, inovou ao descobrir provas da existência de buracos negros fora do centro das galáxias.

Além disso, o levantamento das grandes estruturas do universo, do qual participa a equipe de Luiz Nicolaci da Costa, do Observatório Nacional, deverá ajudar a explicar os mistérios que a ciência ainda não desvendou.
(Valor Econômico, 2/10)