1859 - uma visão do século 19 que teima não colapsar apesar do que a tecnologia do século 21 nos mostrou sobre a evolução

terça-feira, agosto 11, 2009

JC e-mail 3824, de 11 de Agosto de 2009.

17. 1609, artigo de Marcelo Gleiser

"Quando a tecnologia nos permite ver mais longe, visões de mundo podem colapsar"

Marcelo Gleiser é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo". Artigo publicado na "Folha de SP":

Já são passados 400 anos desde que dois feitos mudaram para sempre a nossa relação com o cosmo. Apesar de um deles ser bem mais famoso do que o outro, ambos contribuíram radicalmente para a mudança de visão de mundo que inaugurou a era copernicana do conhecimento, quando a Terra (e o homem) deixaram de ser o centro -geométrico e teológico- do Universo.

Pois mesmo que o polonês Nicolau Copérnico tenha publicado o seu grande livro "Sobre as Revoluções das Esferas Celestes" em 1543, o impacto de suas ideias só se deu após o trabalho audacioso de Galileu Galilei e Johannes Kepler, que culminou na publicação de dois livros, em 1609 e 1610.

Vale a pena pôr as coisas em perspectiva. O que Galileu e Kepler (e, em parte, Giordano Bruno, Descartes e outros) conseguiram foi mudar a perspectiva cósmica de sua época, redefinindo o lugar da religião na vida das pessoas. Como disse Galileu, a Bíblia deve ensinar às pessoas como ir aos céus e não como os céus vão.

A partir da obra deles, ficou cada vez mais claro que a autoridade divina não deveria mais interferir na busca humana pela compreensão do mundo em que vivemos. Os rumos da fé deveriam ser outros. Tanto para Galileu quanto para Kepler, a natureza era, sem dúvida, obra de Deus. Mas o decorrer dos fenômenos naturais se dava sem a constante interferência divina. Por outro lado, a arquitetura cósmica podia ser descrita através de leis matemáticas precisas, essas sim, revelando algo da natureza de Deus.

Apesar de as origens do telescópio serem nebulosas, sabe-se que, em outubro de 1608, o holandês Hans Lipperhey entrou com um pedido de patente de um instrumento "capaz de visualizar objetos distantes como se estivessem perto" (mais detalhes da história no portal http://galileo.rice.edu/sci/ instruments/telescope.html). As novas rapidamente se espalharam pela Europa e, em meados de 1609, Galileu havia já construído o seu. Mesmo que outros tenham apontado o telescópio aos céus até mesmo antes de Galileu, foram as descobertas do italiano que mudaram a história.

Com o instrumento, ele viu que a Lua não era perfeita, e sim cheia de crateras e montanhas; que Vênus tinha fases, como a Lua; que Júpiter tinha quatro luas; que Saturno tinha "orelhas"; que a Via Láctea era uma enorme coleção de estrelas; e que o Sol tinha manchas na superfície. Nenhuma dessas descobertas confirmava o modelo de Copérnico. Mas, em conjunto, apoiavam a noção de que o Sol, e não a Terra, era o centro do cosmo.

Nesse meio tempo, Kepler trabalhava em Praga, decifrando os dados acumulados pelo grande astrônomo dinamarquês Tycho Brahe. Observando os céus ainda no século 16 e, portanto, sem o telescópio, Brahe usou seus instrumentos de alta precisão para mapear os movimentos dos planetas nos céus.

Com muita paciência e genialidade, Kepler, um copernicano convicto, mostrou que Marte tinha uma órbita elíptica em torno do Sol. Nenhum outro modelo estava de acordo com os dados de Brahe. Em 1609, Kepler publica o seu livro "Astronomia Nova", no qual argumenta que a elipse, e não o círculo -como se acreditava desde os primórdios da astronomia-, descrevia o movimento celeste de Marte (e, mais tarde, de todos os planetas).

Prenunciando a lei da gravidade a ser descoberta por Newton, Kepler especulou também que alguma força emanando do Sol era a responsável pelas órbitas planetárias. É bom lembrar que ambos os cientistas basearam-se em descobertas feitas com novos instrumentos. Quando a tecnologia nos permite ver mais longe, mundos antes imaginários podem se tornar reais. E visões de mundo podem colapsar.
(Folha de SP, 9/8)