A Academia se atrapalhou, mas não foi a que você pensou...

sexta-feira, maio 08, 2009

A Academia se atrapalhou

Livro-referência, Volp sofre com emaranhado de imprecisões da nova lei ortográfica

Josué Machado

Foram meses de trabalho para interpretar o Acordo Ortográfico, traduzi-lo e dar a ele o corpo de 349.737 palavras do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras. A Comissão de Lexicografia da ABL, com Eduarto Portella (presidente), Evanildo Bechara (secretário) e Alfredo Bosi, esteve à frente dos especialistas Ângela Barros Montez, Cláudio Mello Sobrinho, Débora Garcia Restom, Dylma Bezerra e Ronaldo Menegaz.

Como toda obra humana, o livro da Global Editora - base para os dicionários - saiu com falhas. Poucas até, considerando que se baseou num texto impreciso marcado por lacunas. Os idealizadores e redatores do Acordo estavam mais interessados na importância política da unificação do que na solução das centenas de problemas técnicos que legaram à Comissão. Daí as lacunas e a enxurrada de "etcs.".

Das falhas, algumas apontamos aqui como subsídios aos editores do Volp.

O substantivo "coa", por exemplo, saiu acentuado, embora o Acordo deixe só três palavras com acento diferencial: o verbo "pôr", a forma verbal "pôde", 3a pessoa do singular do pretérito perfeito de "pôr", e, em caso de ambiguidade, o substantivo "fôrma". Mas o Volp traz "côa", com o acento para a distinguir de "coa(s)", rara contração de "com" + a. O que é "coa"? Ato ou efeito de coar; coação; porção de líquido coado; e nata coalhada. Têm a grafia das formas verbais "coa", "coas", agora sem o acento circunflexo que as coroava.

Conclui-se que o "coa" acentuado do Volp foi distração, não má interpretação do Acordo. A grafia será corrigida na próxima edição, informa Cláudio Mello Sobrinho, integrante da comissão de lexicografia.

Contradições
Outro engano se refere ao péssimo capítulo do hífen, calcanhar de aquiles do Acordo. No item 7 da Nota explicativa do Volp (página LII), registra-se "água-de-coco", hifenado; no corpo, "água de coco", desifenado. Por que duas formas? É com hifens que deve ser redigida? Daí a nota a incluir entre as "denominações botânicas e zoológicas, as formas designativas de espécies de plantas, flores, frutos, raízes e sementes", ao lado de azeite-de-dendê e bálsamo-do-canadá.

Pronto. No próximo Volp, deverá ter hifens. A não ser que os editores reestudem o caso e o mantenham sem hífen, como "água de cheiro", sinônimo de "água-de-colônia", exceção hifenada. Só que "água de cheiro" não se alinha entre "as formas designativas de espécies de plantas, flores, frutos etc.".

Já "francoatirador" aparece aglutinado no Volp (a vogal final do primeiro elemento é diferente da que inicia o segundo). Mas surge com hífen no dicionário da ABL: "franco-atirador". A forma do Volp prevalece.

Omissões
Há outras oscilações, mais com jeito de omissões. Faltam palavras muito usadas como "megassena" e "duplassena", grafadas pela regra que duplica r e s do segundo elemento unido ao primeiro terminado em vogal. Estão lá "megassigmoide", "megassismo" e "megassoma". "Megassena" ficará entre elas. Não haverá dúvidas também sobre a grafia de "seminovo", que não está no Volp por provável esquecimento. Surgirá por certo no futuro ao lado de "seminorma", "seminota", "seminu" e outras com "semi-" aglutinado ao segundo elemento iniciado por consoante.

E "jogo-treino"? Ou será "jogo treino"? É um composto? Um encadeamento vocabular? Saberá o "homem comum", como o chama Bechara, distinguir uma coisa da outra? E quando se tratar de formação por prefixação, recomposição e sufixação? E como conseguirá identificar uma "unidade fraseológica constitutiva de lexia nominalizada"? Com ou sem hífen? É exceção? Ai do homem comum. E do incomum também, se houver.

Nos casos omissos, quem será capaz de identificar "alguns compostos em relação aos quais se perdeu, em certa medida, a noção de composição" para grafá-los aglutinadamente? Não o homem comum, por certo. Conclui-se que "jogo treino" aparecerá sem hífen em futuras edições do Volp, pois "jogo da bola", "jogo da glória", "jogo da velha" e "jogo do homem", antes hifenados, estão sem hífen. Mas não há "jogo do galo", sinônimo de "jogo da velha". Questão de analogia, portanto.

Também não há "bem-passado", embora "malpassado" lá esteja. Verdade que "bem-passado" não consta dos dicionários anteriores ao Acordo. Mas conclui-se que a grafia é "bem-passado". Talvez fosse o caso de incluir os antônimos das formações presentes no Volp. Lá estão bem-mandado, bem-nascido, bem-posto, bem-vestido, bem-visto etc.

Estranheza
Os editores terão de acrescentar formações como "fio terra", "meia bomba", "lava a jato", "lava rápido". Não basta que o "homem comum" fique com a suposição de que, se o encadeamento vocabular não está no Volp, não tem hífen. Nem basta supor que se não havia hífen antes não haverá agora. Mesmo porque "pôr de sol" e "pôr do sol" estão ali alinhados, a mostrar que seus hifens foram derrubados pelo Acordo.

Casos como do verbo "soto-pôr" causam estranheza. Antes do Acordo, foi eternizado "sotopor". O Volp alinha "soto-pôr" e abaixo "sotoposto". Significa que o hífen desaparecerá nas formas conjugadas? O Acordo define que os prefixos ex-, sota-, soto-, vice- e vizo- serão unidos por hífen ao segundo elemento.

Com o monstrengo léxico "soto--pôr", a comissão da ABL achou melhor ser fiel à letra do Acordo e ignorar a tradição lexicográfica. Mas em "coerdeiro" ignorou o Acordo, que aponta "co-herdeiro", e ficou com a forma aglutinada sem h, como em "coabitar", "coabitação", "coabitante", seguindo a tradição. Seguiu a tradição com o prefixo re-, que se junta ao segundo elemento iniciado por e: reeditar, reeleger etc. Assim evitou deformações como "irre-elegível". Mas preferiu ser obediente ao Acordo com "soto-por". Por quê não "sotopor"? Não por falta de tradição, porque o primeiro registro é de 1572, diz o Houaiss. E o dicionário de Moraes Silva, de 1813, o registra numa só palavra, como desde então em nossos dicionários. Caberá revisão?

Prefixos
Alguns autores estranham casos como o do prefixo tele-, que se liga por hífen ao segundo elemento iniciado por e, regra clara. O Volp, no entanto, registra "telespectador", "telespetáculo", "teleducação", "teleducando" e outras crases que atropelam a regra. São exceções assinaladas por Bechara nos livros A Nova Ortografia e O Que Muda com o Novo Acordo Ortográfico. Em nota explicativa da Base XVI, que trata do hífen quando o primeiro elemento termina por vogal igual à que inicia o segundo elemento, diz ele em O Que Muda...:

"O encontro de vogais iguais tem facilitado o aparecimento de formas reais ou potencialmente possíveis com crase, do tipo de alfaglutinação, ao lado de alfa-aglutinação; ovadoblongo, ao lado de ovado-oblongo. Para atender à regra geral de hifenizar o encontro de vogais iguais, é preferível evitar possíveis crases no uso corrente, ressalvados os casos em que elas se mostram naturais, e não forçadas, como ocorre em telespectador (e não tele-espectador), radiouvinte (e não rádio-ouvinte)."

Se não constar das exceções ("tele-entrega" não consta), sua grafia será com hífen, embora não apareça no Volp, que traz "teleducação" e "teleducando". O que talvez ocorra com "tele-entrega" é que os dicionários registrem duas formas, como fazem com "teleducação"/"tele-educação", "teleducando"/"tele-educando". A não ser que não a tenham registrado por ser mal formada e por causa do significado movediço. O que significa "tele-entregar"? Entregar pedido feito por telefone ou entregar algum pedido por telefone, coisa ainda inimaginável? Conclui-se que a palavra não faz falta a ninguém.

Não e quase
Outra curiosidade é a da Nota explicativa do Volp, página LIII. O Acordo excluiu o hífen quando as palavras "não" e "quase" agem como prefixos. Agora é "não agressão", "não fumante", "quase delito", "quase irmão". Estranho, no entanto, é o penúltimo parágrafo da Nota:

"Está claro que, para atender a especiais situações de expressividade estilística com a utilização de recursos ortográficos, se pode recorrer ao emprego do hífen nestes e em todos os outros casos que o uso permitir. É recurso a que se socorrem muitas línguas. Deste "não" hifenado se serviram no alemão Ficthe e Hegel para exercer importante função significativa nas respectivas terminologias filosóficas; nicht-sein e nicht-ich, de que outros idiomas europeus se apropriaram como calços linguísticos. Não é, portanto, recursos para ser banalizado."

Aí, o professor Bechara foi longe. Quem escrever algo que ache importante, e quiser hífen em formações com "não" e "quase" para realçá-las, poderá fazê-lo.

Distrações, curiosidades, oscilações... Bem que Bechara previu que, apesar do esforço, os editores do Volp sofreriam críticas de quem procura erros alheios, hábito muito ruim: "Temos de fazer o melhor possível, mas de qualquer jeito vamos apanhar muito".
Nem tanto.

As dúvidas ortográficas
Aspectos que faltam ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa

OMISSÕES

Bem-passado
Duplassena
Fio terra Jogo treino
Jogo do galo
Lava a jato
Lava rápido
Megassena
Meia bomba Seminovo

CORREÇÕES
Coa (sairá sem acento)
Água-de-coco (sairá com hífen)

PLURAL DE COMPOSTOS COM PALAVRAS IGUAIS

O plural de nomes compostos por palavras repetidas ou onomatopaicas deixa dúvidas no Volp. A regra básica é que só o segundo elemento varia: corre-corre, corre-corres; pisca-pisca, pisca-piscas; reco-reco, reco-recos; tico-tico, tico-ticos; tique-taque, tique-taques; toque-toque, toque-toques; vira-vira, vira-viras.

Mas dicionários registram variantes populares, como "corres-corres", "piscas--piscas". O Volp incorpora formas como "piscas-piscas" com "pisca-piscas"; "vira-viras" com "viras-vira" e mantém a forma única de dois números para "esconde-esconde". Portanto, o "esconde-esconde" e os "esconde-esconde".

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Fonte.