Moacyr Scliar, "O Globo", louvaminha Darwin, o gênio hipocondríaco

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

JC e-mail 3698, de 09 de Fevereiro de 2009

16. Um gênio hipocondríaco, artigo de Moacyr Scliar

“Talvez Darwin tivesse vários problemas de saúde, acompanhados por hipocondria. Mas o admirável em sua história é que ele, apesar de tudo, foi em frente, encontrando na pesquisa científica um conforto”

Moacyr Scliar é médico e escritor. Artigo publicado em “O Globo”:

Durante boa parte de sua vida, Charles Darwin cujo bicentenário de nascimento é lembrado neste 12 de fevereiro, sofreu de diversos e debilitantes sintomas que prejudicavam sua atividade científica e intelectual e obrigavam-no inclusive a guardar o leito, obrigando-o a procurar os mais diversos tratamentos e tornando-lhe a vida “intolerável e improdutiva”, segundo suas palavras.

Filho de um pai autoritário e de uma mãe precocemente falecida, educado num ambiente vitoriano e muito religioso, Darwin desde cedo viveu conflitos emocionais, inclusive quando, por insistência do pai que era médico, foi estudar medicina na Universidade de Edimburgo. Não ficou muito tempo ali: horrorizado com operações a que teve de assistir (duas, sendo uma delas numa criança), desistiu do curso. O pai insistiu para que se tornasse clérigo; Charles matriculou-se em Cambridge para fazer os estudos religiosos, mas acabou enveredando pela história natural.

Aos 22 anos empreendeu a famosa viagem a bordo do Beagle, da qual nasceria a teoria da evolução.

Os dois meses que antecederam a partida foram, em suas palavras, “o mais miserável período de minha vida... Eu estava deprimido diante da perspectiva de deixar minha família e amigos por tanto tempo.” Palpitações e dores no peito fizeram-no suspeitar de que tinha uma doença cardíaca, mas, com medo de ser impedido de viajar, não consultou um médico.

A viagem, que durou cinco anos, transcorreu relativamente bem, mas na volta, porém, continuou a ter sintomas (palpitações, dor de cabeça, perturbações digestivas, insônia, cansaço, cólicas, câimbras, falta de ar, tremores, vômitos, problemas de pele) que, significativamente, agravaram-se na primeira gravidez da esposa Emma. Quem o tratava era o pai, sempre impaciente com os sintomas do filho, por ele rotulados como “nevralgia”.

Mais tarde Darwin consultou outros médicos e recorreu a incontáveis medicamentos e tratamentos como “estimulação elétrica do abdome”.

Por fim, tentou uma estação de águas onde melhorou, conseguindo “caminhar e comer como um cristão”. Apesar de seu mal-estar, tratava de evitar os charlatães, então muito comuns. E, apesar dos sintomas, viveu até os 73 anos.

Que doença, ou doenças, tinha afinal Charles Darwin? Em retrospecto é difícil de dizer, mas em seu livro sobre hipocondria, a psicóloga americana Susan Baur não hesita em inclui-lo numa longa lista de hipocondríacos notáveis: Molière, Voltaire, Samuel Johnson, Jonathan Swift, James Boswell, Immanuel Kant, Beethoven, os irmãos Goncourt, André Gide.

De fato, com o seu complicado background emocional não é difícil imaginálo portador de um problema psicossomático e até mesmo da doença do pânico, mas outras possibilidades foram aventadas, por exemplo, a doença de Menière, um problema de labirinto que se manifesta por tontura, náusea, vômitos e zumbido (mas ele tinha muitos outros sintomas não relacionados com esta situação).

Também fala-se em intolerância à lactose; aparentemente Darwin sentia-se melhor quando evitava o leite. E que dizer do arsênico que tomou como remédio? Poderia ser uma causa? Talvez sim, mas não por 40 anos.

Uma hipótese fascinante é a de doença de Chagas. Em sua viagem, Darwin esteve na Argentina, onde foi picado pelo barbeiro, inseto transmissor da enfermidade. À ocasião teve febre, e poderia ter sido infectado pelo tripanossoma, mas a verdade é que com o tempo melhorou, o que em geral não acontece com chagásicos crônicos, nos quais os problemas cardíacos e digestivos tendem a se agravar.

Talvez Darwin tivesse vários problemas de saúde, acompanhados por hipocondria. Mas o admirável em sua história é que ele, apesar de tudo, foi em frente, encontrando na pesquisa científica um conforto: “O entusiasmo que me inspira este trabalho faz-me por vezes esquecer meus constantes problemas”, escreveu. Mensagem digna do grande cientista que foi e um consolo para nossas mazelas cotidianas.
(O Globo, 7/2)